Em pleno século 21, jovens renovam ideais de liberdade, não violência e respeito às diferenças. Além das ruas, a internet é o palco das discussões
Publicado em 11/07/2011.
Olívia Mindêlo
Se perguntarmos a um jovem o seu maior sonho, é provável que ele nos dê uma resposta pessoal. Como ter uma carreira bem-sucedida para comprar um apê ou o próximo lançamento da Apple. Uma enquete realizada recentemente no Brasil, pela Datafolha e pelo Box1824, revelou que os jovens querem mais é trabalhar. Viajar, ser feliz, ter saúde, tudo isso se mostrou secundário para os mais de 3 mil entrevistados, com idade entre 18 e 24 anos. Considerando que é preciso olhar com cautela para sondagens como essa, geralmente interessadas em checar o perfil de consumo de uma nação, é necessário levar em conta um contraponto importante. A despeito de estatísticas assim, há milhares de jovens no Brasil e no mundo querendo mais que ter contas em dia ou uma sexta-feira para curtir a happy hour após uma semana de trabalho.
O Muro de Berlim ruiu e as utopias socialistas foram repensadas no Ocidente. A ditadura brasileira foi-se com os anos 1980 e o Plano Real chegou como a grande promessa dos anos 1990 no País. Até que enfim democracia. Televisão para todos. Mas isso não quer dizer que toda a juventude tenha perdido seus ideais de mudança social e que deva ser resumida a “uma banda numa propaganda de refrigerantes”, como já cansaram de tocar os Engenheiros do Hawaii. Os jovens não apenas têm outros sonhos – além de querer trabalhar e consumir para si, como tentam lutar por esses desejos, que tendem a ser mais ideológicos do que utópicos, no sentido do horizonte distante.
As marchas da liberdade, da maconha, das vadias. As paradas gays e a mobilização na internet. Os protestos dos indignados na Europa. Tudo isso tem um calendário: 2011. Coincidentemente ou não, muitas das manifestações aconteceram em maio. Mas não se trata da rebeldia francesa do final dos anos 1960, nem de fatos do passado. Tampouco têm a ver somente com questões pontuais ou locais. São símbolos ou sintomas de uma juventude inquieta, que almeja um mundo melhor. Se em maio de 68, eram os valores de uma sociedade tradicional que estavam prioritariamente em jogo, desta vez há muito mais questões em debate.
Longe de significar um clichê geracional de mentes sonhadoras, o ativismo juvenil atual ganha feições e discursos contemporâneos, para não dizer diversos. E não passam somente por práticas com “sangue no olho” e um cartaz na mão. Nem necessariamente por filiação partidária ou por um posicionamento nos termos da clássica dicotomia direita x esquerda. Na Europa, houve até música erudita em um dos movimentos e estudantes como o catalão Jaume Sastre, 27 anos, que ficaram contentes ao ver a praça se transformar, durante os protestos dos quais participou em Barcelona, num espaço de reconhecimento, onde “olhar nos olhos e sorrir se constituíam um ato político”. Não que a contestação mais incisiva esteja ausente, mas outras formas de hastear bandeiras parecem surgir, nas ruas e na internet.
“Existem várias juventudes, e não uma ou duas, com realidades sociais, culturais, econômicas e territoriais distintas. No mundo árabe, há aspectos de dominação política e cultural. Na Espanha, embora exista uma democracia tradicionalmente constituída, questiona-se a legitimidade política das representações partidárias. Havia a crença de que a democracia responderia às necessidades e é justamente essa democracia que é questionada. Tudo isso se traduz na busca por outros espaços públicos”, analisa a socióloga e educadora em economia solidária Alzira Medeiros, 56, que lutou como líder estudantil contra o regime militar brasileiro, nos anos 70.
Na percepção do sociólogo e compositor Paulo Marcondes, um ponto crucial é observar o contexto histórico em que se constroem os discursos da juventude. “A luta de hoje tende a ter mais foco no cotidiano, no aqui e agora, e não em construir no futuro uma sociedade mais justa”, compara Marcondes, que desenvolveu pesquisa nos anos 1980 sobre a relação entre juventude e política, a partir de letras de bandas de rock nacionais. Alzira concorda: “Na minha juventude, existia um sonho em um projeto futuro. A experiência do Estado socialista pôs a nu uma série de fragilidades, mostrando que não era bem esse o sonho. Hoje, acredito que a mudança tenha que ser construída desde já.”
SONHO POSSÍVEL
Hoje, os jovens querem ter o direito de beijar na boca do mesmo sexo em praça pública e não ser apedrejados por isso. Querem o fim da hipocrisia e a regulamentação de drogas, como a maconha. Querem o direito de simplesmente celebrar a vida, sem preconceitos. Querem mais educação, mais liberdade. Querem uma democracia robusta. Querem o respeito às diferenças. Querem um mundo melhor, de preferência sustentável, com bicicletas nas ruas. Querem viver dignamente e ser felizes. Não simplesmente como peça de uma engrenagem. Não como caramujos que são obrigados a se esconder de um mundo hostil, por ter escolhas impronunciáveis em uma mesa de jantar familiar onde tudo-está-no-seu-devido-lugar.
Os jornalistas Neco Tabosa, 34, e Carol Almeida, 33, são exemplos disso. Cansados da intolerância e de ver um comportamento de retração diante do preconceito alheio, resolveram colocar, de forma mais consciente, a política na pauta de suas vidas. Há quatro anos, Neco ajuda a organizar a Marcha da Maconha no Recife. Ele é a favor da discussão e da Cannabis regulamentada, começando pelo seu bairro (Boa Vista). Defende a luta pelo direito de festejar, parafraseando os Beastie Boys Fight for your right. “Conhecia um monte de gente que fumava e se escondia do marido, da mulher; não queria falar por medo. Para mim, foi uma adesão natural ao tema, digamos assim”, conta Neco, sempre cheio de graça. É dele, aliás, a frase “Marcha da maconha. Eu fui?”, usada em panfleto virtual no blog //filipetadamassa.blogspot.com/ e replicado por José Simão.
Seu espírito bem-humorado passa longe de falta de maturidade em relação à questão. Ao contrário. Para o jornalista, a descriminalização da maconha diz respeito não só aos usuários, ou aos “ervoafetivos”, como se refere a um termo que já circula na web. Envolve toda a sociedade. E por isso se sente com o dever de comunicador social cumprido, quando trabalha para esclarecer o tema, ainda cheio de tabus, mas com muitos adeptos dispostos a se expor e a lutar.
E por falar nisso, o projeto criado por Carol Almeida na web também sensibilizou gente de todo o País. Segundo ela, a proposta nem começou para ser um movimento social, nos termos do senso comum, mas tomou proporções inesperadas. A ideia inicial partiu de um desabafo. A vontade era dar um basta às manifestações de ódio contra minorias e traduzir na bandeira homossexual um discurso contra a intolerância e a violência, independente da orientação sexual dos envolvidos com o projeto. O propósito era simples: para aderir à causa, bastava enviar por e-mail uma foto com a frase #Eu sou gay. O resultado? Entre abril e maio, mais de 2,5 mil pessoas mandaram imagens e relatos para os organizadores, que transformaram o engajamento coletivo em vídeo, divulgado na internet na semana passada (veja em http://projetoeusougay.wordpress.com/). A iniciativa recebeu ainda o Prêmio Cidadania em Respeito à Diversidade, da Associação da Parada LGBT em São Paulo. “Não imaginava que teria essa repercussão. O projeto não nasceu atrelado a sindicato, nem a partido. Nasceu porque tinha uma mensagem legal a ser passada”, diz Carol.
Na visão da jornalista, o problema relacionado ao ódio contra gays, nordestinos, negros e mulheres tem raiz na ignorância, capaz de levar a humanidade a práticas criminosas. Contra elas também luta a funcionária pública Kilma Cavalcanti, 27, que participou da Marcha das Vadias, em Brasília. Aglutinando cartazes com dizeres como “Machismo mata” ou “Não sou puta, não sou santa, sou livre”, a marcha foi realizada em várias cidades pelo mundo. A mobilização partiu de respostas à declaração de um policial no Canadá, que disse que as mulheres deveriam parar de usar roupas de vadias para evitar estupros. A bandeira do movimento se voltou contra a culpa às vítimas, ao machismo e à liberdade sexual. “Defendo o feminismo, que não é datado nem coisa de ‘mulher’ mal-amada, como se diz. É preciso vê-lo com olhos atuais”, afirma Kilma, que segue engajada no trabalho e num grupo do Distrito Federal, formado por 60 mulheres, a maioria jovens que pensam novos meios de articulação.
A estudante de medicina Marcela Vieira Freire, 22, também não vê como anacrônica a defesa por um socialismo. Na verdade, acredita no comunismo, embora concorde que a experiência socialista de Estado não tenha representado o modelo sonhado. Mesmo assim, segue tentando pôr em prática um sonho de igualdade social a partir do levante das bases populares contra o capital. Como coordenadora do Diretório Acadêmico (D.A.) de medicina, luta, entre outras questões, por acesso à saúde e educação de qualidade. Ela identifica uma crise no movimento estudantil, mas também acha que as marchas atuais carecem de um ponto comum capaz de unir os ideais.
Não é o que acredita Franzé Matos, 25, filósofo e artista. Ele participou do D.A. de filosofia por um ano e meio, mas desistiu quando se viu diante de formalismos e disputas partidárias. Preferiu ser livre em seu posicionamento político e já foi a diferentes marchas (maconha, liberdade, vadias, etc.). Também colabora com o coletivo Lumo, braço no Recife da rede de cultura Fora do Eixo, que atua em modelo cooperativo (e alternativo) de organização social.
A ideia de coletivo é a bandeira defendida, aliás, pelos produtores Jéssica Miranda, 23, e Alejandro Vargas, 30, à frente do Lumo. Eles não só sustentam ideais de liberdade, como tentam colocá-los em prática, em busca de vidas livres e felizes, que não significa o mesmo que sonhar com uma profissão e ganhar dinheiro. Para o escritor Eduardo Galeano, este mundo está gerando um novo e serão os jovens, mesmo não sendo só eles, que nos levarão para a frente