Existe no imaginário da população cearense a falácia de que "no Ceará não há negros”. Apesar de ter em suas festas tradicionais elementos da cultura negra como reisados, congadas e o tão conhecido maracatu, o pouco reconhecimento da identidade negra no Ceará talvez contribua para a invisibilidade desta população e dos problemas que ela enfrenta no estado.
De acordo com o último Censo Demográfico de 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Ceará possui uma população de 8.452.381 pessoas. Deste total, apenas 385.207 se declaram negros e negras. Os/as jovens negros/as cearenses, de 15 a 24 anos de idade, somam 69.344. Como, então, defender os direitos de uma juventude "invisível”?
Seguindo a tendência do Brasil, os homicídios no Ceará, classificados por raça e cor, registram uma grande diferença entre brancos e negros. De acordo com o Mapa da Violência 2012 – Os novos padrões da violência homicida no Brasil, do Instituto Sangari, o Ceará registrou, em 2010, o assassinato de 1613 negros, frente a 275 brancos.
Quando se trata da população jovem, as pesquisas demonstram que é na faixa etária dos 15 aos 24 anos onde estão concentradas as mortes, que se estendem também de forma significativa até os 29 anos de idade.
Apesar do aumento constante desses dados, não deixando dúvidas sobre o fato de que os jovens, sobretudo negros, correm alto risco de morte, ainda não há políticas públicas de enfrentamento a esse tipo de violência, que consigam reverter o quadro atual e que garantam a segurança desses jovens. "Pelo contrário, a vitimização juvenil no país continua crescendo, sendo claro indicador da insuficiência dessas políticas”, indica o relatório.
Para tentar reverter essa realidade é que os/as 18 jovens do Coletivo Enegrecer Ceará discutem políticas públicas, lutam para combater o racismo e para exercer seu protagonismo, sobretudo, na defesa da população jovem negra, desde 2006.
Participantes da campanha contra o genocídio da juventude negra, o Coletivo Enegrecer Ceará também desenvolve, em nível local, o projeto "Ubuntu - Juventude Negra, Juventude Viva”, financiado por edital da Prefeitura Municipal de Fortaleza.
Geyse Anne Souza da Silva, de 19 anos, coordenadora do projeto, explica que a intenção é dialogar sobre o genocídio da juventude negra e escolheram a escola, onde se encontra a maioria dos jovens, para desenvolver a campanha.
Os encontros com os alunos da escola estadual Irapuan Cavalcante Pinheiro, localizada no Conjunto Esperança, na periferia de Fortaleza, aconteceram entre junho e julho deste ano, através de oficinas que debateram sobre a questão racial, o genocídio da juventude negra, cotas raciais nas universidades, rodas de capoeira, além de apresentação de um vídeo sobre afirmação da juventude negra.
Com o fim das atividades, que coincidiu com o período escolar de férias, ficou uma certeza: a intenção de voltar e dar continuidade aos trabalhos. "Queremos voltar porque a aceitação dos estudantes e da diretoria foi boa e queremos continuar para abranger mais pessoas nas oficinas sobre genocídio”, revela, destacando o sucesso do primeiro projeto realizado pelo Coletivo Enegrecer do Ceará.
"A expectativa foi boa e foi uma experiência nova para mim e para os outros militantes. A gente pretende fazer [o projeto] em outras escolas, levar o debate para a juventude negra de Fortaleza, e também para os brancos”, declara Geyse Anne.
Fortalecimento:
Gabriel Silva, de 29 anos, um dos integrantes da coordenação do Coletivo Enegrecer Ceará, citou a relação com outros movimentos juvenis de Fortaleza, como a organização Juventude Negra Kalunga. "Somos coletivos diferentes, mas com participação política igual. O Enegrecer tem mais participação de estudantes, enquanto a Kalunga é mais popular nos bairros. É preciso ter diversos coletivos para fortalecer a luta do movimento jovem negro no Ceará”, comenta.
Kalunga:
Surgida em 2007, a Juventude Negra Kalunga enfrentou vários desafios até conseguir conquistar seu espaço. Isso é o que relata Luizete Vicente, de 27 anos, uma das integrantes do grupo, atualmente composto por 10 jovens.
Segundo ela, a Kalunga passou por situações como a falta de apoio de outros movimentos, inclusive o negro, até a realização de atividades sem público. "A gente ia fazer atividades e ouvia "Ah, vocês não são negros, vocês são morenos, pra que vocês estão discutindo isso?”. Já começava assim. Ou: "vocês são tão novinhos”... Aí tinha esse problema”, lembra.
Para superar os desafios, os/as jovens passaram por momentos intensos de estudo e formação interna até conseguirem ser aprovados em um projeto da Geração MudaMundo – da Ashoka, em 2008, o que possibilitou realizarem formações dentro das escolas. A experiência mostrou que a Kalunga encontrava seu caminho.
"A gente chegava e não era só no período do 20 de Novembro (Dia Nacional da Consciência Negra), a gente ia muito antes e dava formação. A gente falava sobre a história do negro no Ceará, sobre conceito, a cultura, a identidade cultural negra, e por último, a juventude”, explica.
A partir daí, o grupo começou a se fortalecer cada vez mais, ganhar o respeito de outros movimentos e realizar parcerias. Em 2010 a Kalunga fica responsável por organizar o "Seminário Nacional Lutas e Resistências da Juventude Negra”, dentro do I Festival das Juventudes em Fortaleza. "Esse foi o seminário que determinou realmente o nosso espaço e a pauta aqui dentro”, ressalta.
Enfrentando altos e baixos, o grupo planeja seus próximos passos. "Com a aprovação das cotas a Kalunga vai ter agora um novo momento, que é discutir dentro das universidades a questão das cotas raciais”, revela. De acordo com Luizete, o grupo já está se articulando para fechar parcerias com as duas universidades públicas do estado, Universidade Federal do Ceará (UFC) e Universidade Estadual do Ceará (UECE), para realizar rodas de conversa sobre cotas.
Redenção?
O estado do Ceará se vangloria de ter sido a primeira província brasileira a abolir a escravidão no Brasil, a ponto de ser conhecido como ‘Terra da Luz’. O feito aconteceu na cidade de Redenção em 25 de março de 1884 – quatro anos antes, então, do 13 de Maio, marcado pela assinatura da Lei Áurea, em 1888. A abolição, no entanto, se deu num contexto, onde a presença do povo negro não era, sob o ponto de vista comercial, interessante para os fazendeiros e demais castas ricas cearenses, uma vez que não se teve fortemente a cultura de cana-de-açúcar ou do café, comum em outros estados como Bahia e Rio de Janeiro, por exemplo.
"Negros no Ceará – Redenção?” é uma série de matérias elaboradas por ADITAL que busca retratar e questionar a história atual do povo negro no Ceará. Quais são suas lutas, como se identificam neste processo ainda bem marcado pelas nuanças brancas, o que tem a dizer sobre o orgulho de ser negro, o que acham das políticas afirmativas, o que pensam do preconceito. Essas são algumas das diretrizes que procuram evidenciar esta cultura rica que, embora invisibilizada, pulsa forte como uma batida do maracatu e que cada vez mais conquista seu espaço através de muita luta, que reverbera em seus tambores o ritmo da justiça e o anseio de peitar uma dívida histórica social.
Conheça mais do Coletivo Enegrecer e da Juventude Negra Kalunga acessando os respectivos blogues:
http://enegrecer.blogspot.com.br/
http://juventudenegrakalunga.blogspot.com.br/
Fonte: Adital.
Por Tatiana Félix.